Grande entrevista com Hugo Figueira

Belém até Morrer: Começaste a jogar andebol com 9 anos de idade, no clube da tua terra, “O Palmeiras.” Num país tão tristemente “futeboleiro”, como ingressaste na modalidade?

Hugo Figueira: Foi engraçado porque o meu irmão mais velho jogava no Palmeiras no escalão de iniciados. Devido ao facto de eu muitas vezes ir ver os treinos do meu irmão, o treinador Aníbal convidou-me para ir treinar uma vez e eu fui e gostei. Comecei a treinar com o meu irmão e íamos sempre juntos e tudo o mais. Entretanto, quando um miúdo começa a jogar não tem força para rematar, para marcar golos. Devido a essa situação (risos) comecei a desesperar e disse ao treinador: “Não quero ir mais marcar golos, quero ir para a baliza”. E foi assim. Comecei a gostar e aqui estou eu hoje.

BAM: Então recordas com saudade esses tempos. Lembraste da sensação de conquistares o primeiro título, de ser campeão distrital de Setúbal?

Hugo Figueira: Tenho recordações muito vagas dessa situação. Eu nunca pensei, quando comecei a jogar andebol, que iria ser esta a minha profissão. Nunca pensei chegar onde cheguei, à selecção nacional e aos clubes que representei. Graças a Deus que o consegui, e até hoje não me arrependo da opção que fiz.

BAM: Mas recordas algo desse primeiro título em criança ou, passados todos estes anos, esse momento é algo muito vago?

Hugo Figueira: É um pouco vago porque nessa altura, com essa idade, não temos grande noção da realidade do que conseguimos alcançar. Ser campeão distrital é ser a melhor equipa nesse escalão no distrito. Se calhar tem mais importância para mim quando fui campeão nacional, algo que marca sempre qualquer jogador. Recordo também com saudade a medalha de bronze no Mundial de Juniores da Argentina, em 1995. Eu era o terceiro guarda-redes com 15 anos, não é fácil de lá chegar tendo jogadores como o Sérgio Morgado e o Rui Nunes à minha frente que tinham 20 ou 21 anos, sendo essa diferença de idade muito importante nos escalões de formação.

BAM: Íamos abordar precisamente essa parte da tua vida desportiva. Após o Palmeiras extinguir a secção foste jogar para o Grupo Académico de Alcochete onde, no escalão de juvenis, mereceste o direito a representar a selecção nacional pela primeira vez. Lembras-te do teu primeiro jogo pela selecção?

Hugo Figueira: Foi num jogo para uma taça das Quatro Nações, numa selecção acima, eu era sub-18 e fui chamado à selecção sub-20. O treinador era o Carlos Jorge que já passou pelo Belenenses. Lembro-me muito bem dessa situação. O jogo foi contra a Itália e Portugal ganhou. Não fiz nada de especial (risos).

BAM: Em 1994, quando tinhas 15 anos, foste jogar para o Sporting. Apesar da distância do Montijo para Lisboa ser curta, treinares diariamente na capital afectou certamente a tua vida. Conseguiste compatibilizar os estudos com o andebol?

Hugo Figueira: Afectou. Nessa situação é um bocado complicado, temos que falar com os professores. Também ao fazermos parte da selecção nacional abdicamos muito da nossa vida e dos estudos também. O que eu digo a toda a gente e aos jovens aqui da formação do Belenenses é para não descurarem os estudos e para continuarem a estudar porque uma pessoa sendo organizada tem tempo para tudo. Penso que na minha situação foi o que aconteceu. Falei com os professores, expliquei-lhes que tinha que apanhar o barco e o metro todos os dias, e que a minha vida era um pouco complicada em termos de tempo. Eles perceberam e graças a Deus porque agora já estou na faculdade.

BAM: Embora já tenhas abordado este assunto, gostaria de regressar ao Mundial de Juniores da Argentina no qual ganhaste uma medalha de bronze ao serviço da selecção. Como é que viveste essa aventura aos 15 anos?

Hugo Figueira: Foi engraçado porque o prof. Carlos Jorge tinha-me visto um mês antes numa selecção da minha idade e eu fui para esse estágio da selecção sub-20 como terceiro guarda-redes. A ideia era só levar dois guarda-redes. Nessa altura foi engraçado porque eu ia só fazer o estágio – foi em Vieira de Leiria, tenho isso muito presente na minha memória – e não tinha passaporte não tinha nada. Acabaram por ligar ao meu pai nas vésperas da partida a dizer que eu necessitava de tirar o passaporte. Nessa altura com 15 anos nunca pensei ir ao mundial porque estava prometido que eu ia só fazer o estágio mas que não viajaria com os meus colegas de selecção. Entretanto os responsáveis da selecção começaram a ver os treinos e, acho eu, as minhas potencialidades e pensaram que algum dos guarda-redes podia-se lesionar num treino ou num jogo e depois o que é que iriam fazer, a dificuldade de trazer um guarda-redes de Portugal de um dia para o outro. Começaram portanto a pensar que era melhor levar três guarda-redes, devido também a especificidade da posição. Enquanto um jogador de campo sendo lateral esquerdo pode também jogar na ponta esquerda, etc, com um guarda-redes não. É muito especifico. Acabei por ser chamado sem estar nada à espera e tinha feito o estágio sem pressão nenhuma com jogadores como o Eduardo Filipe, o Danilo Ferreira, o Sérgio Morgado que era nessa altura uma das referências para os jogadores mais novos. Fiquei muito contente por ir e por termos conquistado a medalha de bronze. Tendo eu 15 anos, ganhar uma medalha num Mundial de Júniores na Argentina na selecção sub-21 foi muito bom.

BAM: Foi um momento marcante na tua formação, no sentido de pensares a partir dai poder ser andebolista profissional?

Hugo Figueira: Foi um momento marcante na minha formação porque não tinha bem presente a realidade do andebol internacional, o modo como as pessoas trabalhavam no estrangeiro. Penso que foi muito marcante também porque foi nessa altura que percebi que seria “ou sim ou sopas”: “Ou vais para a frente com isto e as pessoas estão a acreditar em ti e tudo ou vais «morrer»”. Cada dia que passa eu penso assim: tenho que ser hoje melhor do que fui ontem, é o meu lema de vida. Tento sempre ser melhor hoje do que fui ontem e amanhã melhor do que fui hoje.

BAM: Do Sporting rumaste para o norte do país, para o Maia, depois para o Gaia e finalmente o Porto, onde te sagraste campeão nacional. Tinhas esse sonho na adolescência? No decorrer dos teus anos de formação traçaste essa meta para ti mesmo?

Hugo Figueira: Posso me orgulhar de ter já ganho tudo o que havia para ganhar no andebol português. Acho que as metas são importantes quando são objectivos alcançáveis e nessa altura ao ingressar no F.C. Porto e com a equipa de tínhamos, com o Carlos Resende, com o Eduardo Filipe, com o Ricardo Costa, o Rui Rocha, o Vladimir Petric, o Carlos Ferreira, arriscava-mo-nos a ser campeões. Foi uma aprendizagem que eu tive que foi muito marcante na minha vida. Penso que foi ai que dei o salto de um guarda-redes médio para um guarda-redes acima da média. Foi nessa altura, nesses três anos que passei no Porto que me afirmei como guarda-redes português a as pessoas começaram a me conhecer também devido às constantes chamadas à selecção. Penso que foi um momento marcante na minha vida também porque foi no decorrer do meu terceiro ano lá que fui titular da selecção nacional portuguesa.

BAM: Tanto eras um guarda-redes muito acima da média que o passo seguinte na tua carreira foi o campeonato espanhol, mais precisamente o Algeciras, onde tiveste a oportunidade de alinhar na Liga Asobal, uma das mais fortes do mundo. Recordas com saudade essa experiência?

Hugo Figueira: Foi uma experiência muito boa e enriquecedora, e não me arrependo nada daquilo que fiz. Se fosse hoje faria tudo exactamente igual. Tínhamos uma excelente equipa. Foi muito importante ter mais dois portugueses na equipa – o Eduardo Filipe e o Ricardo Costa – e foi muito marcante porque éramos três portugueses a viver uma aventura espanhola. O andebol português vivia um momento conturbado devido ao diferendo entre a Federação e a Liga, e fiz muito bem em optar por praticar andebol fora do país, algo que até ali nunca me tinha passado pela cabeça.

BAM: A próxima pergunta incidia precisamente sobre essa questão. Tendo essa experiência internacional, pudeste tomar conhecimento directo com a realidade do forte andebol espanhol que evoluiu tremendamente nos últimos anos. Ao invés, o andebol português estagnou um pouco quer ao nível de clubes, quer ao nível da selecção. Independentemente da guerra que se verificou entre a Federação e o Liga de Clubes quando esta foi criada, que medidas julgas ser necessárias para elevar o andebol português para outro patamar? Poderá o andebol escolar ser o alicerce dessa evolução?

Hugo Figueira: O andebol espanhol quando comparado com português ao nível de trabalho é praticamente igual. A grande diferença verifica-se a nível económico. As equipas espanholas tem muito mais patrocínios, muito mais adeptos e simpatizantes e em Algeciras, por exemplo, nós tínhamos 7000 ou 8000 pessoas a ver os jogos todos os fins-de-semana. Há dois anos em Aranda tínhamos 5000 pessoas a ver os jogos. O andebol é a segunda modalidade mais forte em Espanha, logo a seguir ao futebol, o que se reflecte na sponsorização. Em temos de trabalho é praticamente igual, com treinos bi-diários de manhã e à tarde. A qualidade dos pavilhões também é semelhante, sendo somente a lotação diferente levando muito mais gente. Estamos a falar de dois países totalmente distintos porque Portugal tem 10 milhões de habitantes e na Espanha são cinco vezes mais. Por isso têm desde logo uma base de recrutamento maior em relação a Portugal. Se calhar em Portugal temos na formação 100 000 praticantes, por exemplo, e a Espanha tem 300 000. Logo o universo de praticantes é muito maior, e os treinadores escolhem os melhores. A pirâmide desde a base é muito maior. Ou seja, as diferenças devem-se a factores geográficos e populacionais e, sobretudo, económicos.

BAM: Portugal tem milhares de escolas básicas e secundárias e o andebol começa a ser cada vez mais frequente enquanto modalidade escolar. Poderá ser esse o alicerce para o futuro da modalidade em Portugal se as equipas depois absorverem esses jogadores?

Hugo Figueira: Devido a crise económica e tudo o mais, é óbvio que os clubes não podem ir buscar 7 ou 8 jogadores todos os anos a clubes terceiros, sendo mais valias. Por isso os clubes têm que começar a formar jogadores para chegarem à equipa sénior. O Belenenses está nesse trilho de sucesso e êxito porque este ano fomos buscar muitos jovens com qualidade e sabemos que esses jovens daqui a dois ou três anos – vamos dar tempo para que eles cresçam – vão ser importantes na equipa do Belenenses.

BAM: Ainda antes de abordarmos o futuro queria falar um pouco acerca do passado. Como viveste a época passada, o tua primeira no Belenenses, nomeadamente todos os problemas extra-desportivos?

Hugo Figueira: Foi um grande drama. Nunca me tinha acontecido nada parecido na minha vida. Foi o primeiro ano que joguei no Belenenses, vim de Espanha, e cheguei mesmo a pensar: “Aonde é que me vim meter...”. Acerca do desportivo foi sem dúvida muito bom, ficámos em terceiro lugar, em termos pessoais fiz uma grande época, talvez mesmo uma das melhores da minha vida. Sabia também que o patamar estava alto em relação a mim porque as pessoas sabiam que eu era da selecção nacional e tudo. Acerca do extra-desportivo nunca me passou pela cabeça vir a encontrar o que encontrei. Nunca pensei que tal fosse possível acontecer num clube com a grandeza do Belenenses, que se passassem coisas impensáveis. Tive que mudar de casa, etc. Só aquele grupo de trabalho sabe que o passou e todas as dificuldades a que fomos sujeitos. Só mesmo um grande espírito de grupo nos permitiu passar todas as adversidades e sem dúvida que fomos campeões fora do campo. Nenhuma equipa da liga no ano passado passou os dramas que nós passamos: ordenados em atraso, jogadores que podiam ser despejados de suas casas, o treinador a ser despedido antes de um jogo. Passou-se tudo e mais alguma coisa nesta casa. Claro que comecei a pensar se teria feito bem em escolher o Belenenses, a colocar um ponto de interrogação sabendo que tinha casa, água, luz, alimentação e tudo o mais para pagar e sustentar a minha família. Foi muito complicado...

BAM: Não obstante todos os problemas extra-desportivos a verdade é que o Belenenses, na meia-final com o ABC, esteve muito próximo de alcançar a final. Sendo sempre um exercício arriscado pensas que o Belenenses poderia ter concretizado esse feito caso não tivessem ocorridos todos os problemas que descreveste, caso o Miricki tivesse permanecido no plantel?

Hugo Figueira: É difícil regressar ao passado e fazer futurologia. O que nós sabemos é que a equipa com o Miricki tinha mais soluções. Perdendo um jogador que, sendo canhoto, era mais uma opção válida tanto para o ataque como para a defesa, sendo ainda muito importante a sua presença no sentido de dar descanso a outros jogadores. É um pouco complicado dizer que podíamos ter sido campeões. Só podemos olhar para a frente. Não sabemos se com o Miricki teríamos sido campeões, podíamos ter sido ou não.

BAM: Abordemos então o futuro. O Belenenses perdeu alguns jogadores importantes e em contrapartida reforçou-se – para além de Tiago Silva e João Silva – com muitos jovens, sendo a juventude a grande aposta da secção. Pensas tratar-se de uma aposta motivada exclusivamente pelas dificuldades financeiras e pelo corte orçamental ou, pelo contrário, trata-se de uma aposta consciente, programada e sustentada?

Hugo Figueira: Acho que são dois caminhos que estão paralelos. A crise económica que se vive no país reflecte-se também nos clubes. Penso que fomos buscar jogadores com muita qualidade à formação, jogadores que são mais baratos. É o futuro, o futuro vai ser os jovens. Penso que daqui por um, dois, três anos esses jovens vão-se afirmar no Belenenses como jogadores muito mais experientes, e jogando aqui com esta massa adepta incrível que nós temos sem dúvida que os miúdos vão crescer.

BAM: Para além da liga e das taças de Portugal e da liga, o Belenenses está envolvido numa 4ª frente, a taça EHF. O adversário, o HC Berane, é uma equipa muito experiente e forte fisicamente. Poderá a juventude e a velocidade do Belenenses triunfar perante o campeão do Montenegro?

Hugo Figueira: Ainda não temos muitas informações acerca dessa equipa. Vão chegar algumas informações para a semana. O que eu posso dizer, joguei pela selecção contra o Montenegro, é que os melhores jogadores do país jogam no estrangeiro, nos campeonatos da Alemanha e de Espanha. Sabemos que o patrão dessa equipa tem algum dinheiro e foi buscar alguns jogadores de experiência e veterania. Sendo campeões do Montenegro, deve ser uma equipa boa, mas só para a semana é que saberemos mais acerca do real valor do nosso adversário.

BAM: E como será em termos internos? Sendo esta uma espécie de ano zero para o andebol do clube e com as outras equipas a reforçarem-se, poderá o Belenenses marcar novamente presença nas meias-finais da liga ou preciso dar tempo a esta equipa?

Hugo Figueira: Como já referi a alguns jornais que me abordaram, não podemos pôr a pressão demasiado alta nos jogadores que acabaram de chegar. Vamos começar a construir a casa pelos alicerces e penso que devemos traçar objectivos jogo a jogo. Penso que é importante que os jovens que chegaram começarem a se ambientar ao clube, perceber o que é o Belenenses, perceber o que é jogar no Belenenses, o símbolo que é o Belenenses no panorama nacional. Têm que acreditar neles próprios, no valor deles, eles que têm muitas potencialidades. Os jovens são a Alma deste clube.

BAM: Não obstante teres somente um ano de Belenenses és um jogador muito presente na vida do clube extra-andebol, compareces nos jogos das outras modalidades, conversas muito com os associados... A tua relação com o Belenenses ultrapassa os aspectos meramente profissionais?

Hugo Figueira: Eu sou assim na minha vida diária. Sou uma pessoa afável, simpática, se as pessoas precisarem alguma coisa de mim só não arranjo se não conseguir. É verdade que este clube é diferente, porque nunca tinha encontrado esta empatia entre a equipa e os sócios e simpatizantes que vêm ver os jogos todas as semanas. Não sei se foi devido ao facto de terem ocorrido tantos problemas no ano passado, não sei se isso uniu mais as pessoas em redor da equipa que apesar de todas as adversidades conseguiu andar com o barco para a frente e ganhar jogos, levando-as a se identificarem com esta equipa. Gosto também muito de ver as outras modalidades, o futebol, o futsal e o basquetebol. Identifico-me com o clube e penso que os simpatizantes e os sócios se identificam comigo.

BAM: Muito embora esse momento esteja ainda distante visto que tens apenas 28 anos, encararias com agrado terminares a carreira no Belenenses e depois, noutras funções, continuares ligado ao clube?

Hugo Figueira: Ainda é muito cedo para fazer essa pergunta. Não sei como irá ser o dia de amanhã. O que eu sei é que este clube toca-me no coração, gosto muito do clube, dos seus sócios e simpatizantes, gosto da envolvência do clube. Outras funções? Não sei. Estou a pensar ficar ligado ao andebol após terminar a carreira como treinador adjunto ou principal ou mesmo até como treinador de guarda-redes. Penso que não há muitos treinadores de guarda-redes em Portugal e é um posto especifico em que se deve apostar e quem não tiver uma boa formação não vai chegar lá a cima. Penso que é importante treinar os jovens guarda-redes da formação de maneira a que eles evoluam para chegar primeiro aos seniores e depois à selecção nacional.